quinta-feira, 30 de abril de 2020

ONTEM VIAJEI PELA LUA


Quando pequena, gostava de viajar por mapas, tentando imaginar como seria a vida nos lugares mais distantes que encontrava! Às vezes, olhava os contornos dos países, imaginando se me seria um dia possível conhecer todos eles. Era um jeito de viajar sem sair de casa.

Ontem viajei pela Lua! Dentro de casa, viajei pela Lua pois, há poucos dias, a Nasa, o Serviço Geológico dos EUA (USGS) e o Instituto Lunar Planetário divulgaram o "Mapa Geológico Unificado da Lua". Não foram as novas possibilidades de estudos que me levaram à Lua, mas o passeio exploratório por descobertas antigas, tais como a navegação por mares que não são mares (Mare Serenitatis, Mare Fecunditatis, Mare Tranquilitatis), por lagos que não são lagos (Lacus Doloris, Lacus Somniorum), por golfos que não são golfos (Sinus Amoris, Sinus Concordiae). E também por rimas.

Na Lua também há rimas. Ou melhor, na Lua há fissuras. No Latim rima/rimae significa “fissura”. Na Lua, as diferentes fissuras recebem o nome de rima (fissura) ou rimae (fissuras). Na poética lunar, cabe um pouco de tudo: sentimentos como tranquilidade, amor, dor, serenidade... Também cabem homenagens, pois várias das formações geológicas presentes na superfície da Lua recebem, além dos nomes classificatórios dados pela Geologia Planetária (mare, lacus, sinus, rima), o nome de alguma personalidade, como no caso das rimae.

Viajei ontem por um conjunto chamado Rimae Hypatia. Este conjunto de fraturas na superfície da Lua recebeu o nome de uma mulher que viveu aproximadamente de 351 a 370 d.C., Hypatia de Alexandria. Foi uma filósofa, astrônoma e matemática. Diz-se que construiu astrolábios e hidrômetros, instrumentos que já existiam antes dela. Ensinava a pagãos e a cristãos, independentemente de seu credo pessoal, tendo reconhecida influência política na Alexandria.

Como os gregos estudados de sua época, a maioria deles homens, Hypatia entendia também de poesia. Por isso hoje continua viva na Lua, onde tantas outras rimas se fazem presentes.



sexta-feira, 17 de abril de 2020

PLENITUDES


Nenhuma planta é plena. A cada estação lhes falta algo: no verão, flores; no outono, folhas; no inverno, brotos... No inverno, dormem em seu estado moribundo. Então chega a primavera e espanta de tudo uma quase morte, trazendo a cada planta a força aparente da plenitude.

Mas nenhuma planta é plena e, na primavera, não há seus frutos. As folhas estão verdes, renascidas, as flores brotadas. As flores são a véspera dos frutos. Seus perfumes e suas cores atraem os insetos que seguem em sua missão jardineira. Das flores vem o pólen; dos frutos, os caroços. Ambos geram novas plantas.

Entre eles, outono e primavera, o frio do inverno. Seus cinzas, seus vazios, seus recolhimentos próprios... Cada árvore se despe em tronco seco, desfilando a nudez dos campos. O inverno e seus adormecimentos necessários: nenhuma planta é plena.

Mas sua essência, seu estado-planta, segue o rumo de cada estação. E sabe que as pequenas plenitudes brotam entre pólen e caroços.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

QUASE DOMINGOS


Há algo de preparação na dinâmica dos dias: acordar, tomar café, lavar a louça, aguar as plantas, alimentar os animais, tomar sol. O sol geladinho das manhãs de outono traz a memória primitiva humana dos tempos em que, bebês, nos colocavam para tomar sol. Braços e pernas nus ou cobertos, conforme a época do ano, cedo pela manhã, os bebês são expostos ao sol pelas mãos de um adulto.

Esta pode ser a sensação de muitos quando os dias são quase todos domingo. Cedo, o pouco movimento das ruas envolve o sol em seus silêncios. Sentados ao sol, no silêncio das manhãs, somos bebês sem palavras. Nada distrai nosso corpo, esponjas de claridade. Os raios de sol no outono, perto das 7 da manhã, não são os que bronzeiam, nem os que laceram a pele. São esperança de aquecer a alma, junto com tudo o que se desperta: pássaros, sons de canecas, um ou outro carro, cachorros ao longe, silêncios de gatos...

Cedo, no outono, pode-se ouvir o mundo pela janela, como as crianças em seus tempos de peitoril, olhando a vida que passa. Somos meninos de janela, tentando descobrir a hora certa de sair para brincar. Ou planejando em que recanto nos escondermos, nas futuras brincadeiras de esconde-esconde. 

Hoje e todos os dias são quase fins de semana. Perto das 7 da manhã, quando o sol ainda não arde e ainda não está bem claro, acolhemos em nossos corpos a manhã que desperta. E guardamos para mais um dia o olhar da criança que tem na rua um grande quadro vivo por onde seus olhos e seus ouvidos passeiam.

De domingo a domingo.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

DOS SONS QUE SE OUVEM


Cedo, os ônibus já cruzam as ruas. Freiam seus apitos finos entrecortados e em seguida seguem com seu ronco de motor. Os carros passam por alguma falha no asfalto, dando saltos com seus calçados de pneus. Um único carro recusa-se a fazer silêncio: deve haver algum furo em seu silenciador.

Nas calçadas, um carrinho rola sua roda metálica. Talvez esteja indo buscar comida no supermercado. O carrinho para na calçada, espera uma moto passar com seu som ascendente, até sumir dos ouvidos. Um martelo golpeia ritmadamente alguma parede em construção, enquanto uma serra grita em tom seco com um pedaço de madeira.

Os cachorros latem uns para os outros, como sempre latiram ao se encontrarem durante seus passeios matinais. Já os pássaros cantam em bandos dançando ao vento, que, ao mesmo tempo, zumbe tão contínuo... deslizante!

Enquanto isso, as poucas pessoas que saem a pé gritam bem alto:
- Tudo bem com vocês!
- Sim, quanto tempo, hein?
- Sim, quanto tempo...

As poucas pessoas que saem a pé gritam bem alto, mais do que os carros e os ônibus, mais do que os martelos e as serras, mais do que os cães, os pássaros e o vento. Gritam. Qualquer coisa, qualquer fala. Quem sabe por causa das máscaras, ou apenas para que todos os que estão em suas casas saibam que ainda existem vozes humanas.

terça-feira, 14 de abril de 2020

CAIXA DE LEMBRANÇAS


No dia 14 de abril de 1954, há sessenta e seis anos, nascia o Colégio de Aplicação da UFRGS. Como os demais Colégios de Aplicação, teve o objetivo de integrar experimentações metodológicas pesquisadas nas Universidades Federais à efetiva prática docente, de modo a que aquelas fossem aprimoradas e difundidas em outras escolas, públicas ou privadas.  

Hoje é aniversário do Colégio de Aplicação da UFRGS. Pelos quase vinte e dois anos em que estive lá, todos os anos, em seu aniversário, o Colégio parava no recreio, e vários bolos gigantes eram distribuídos entre estudantes, professores, funcionários, funcionários terceirizados, bolsistas de Extensão e de Pesquisa, estagiários, para comemorar a data.

Com o tempo, a comissão organizadora do evento descobriu que a maioria dos estudantes preferia cachorros-quentes, em vez de bolo. E assim foi feito: todos os anos, todos comiam cachorros-quentes para comemorar mais um ano do Colégio. Todos: estudantes, professores, funcionários, funcionários terceirizados, bolsistas de Extensão e de Pesquisa, estagiários... porque o Colégio era (e ainda é) formado por todos. A festa previa, também, atividades de lazer ou artísticas.

Não sei se nos últimos quatro anos houve comemorações neste formato, pois estive no Colégio de 1994 até 2016. Apenas sei que hoje não vai ser assim, pois não haverá recreio, não haverá aula no prédio do Colégio. Por isso, atendendo ao pedido do Projeto LiteraCAp, escrevo este texto, uma comemoração virtual em agradecimento pelos anos que lá vivi.

Coisas que aprendi no CAp UFRGS...

Aprendi que as ciências ditas exatas têm seu lado prático. Podemos aprender sobre Química, por exemplo, fazendo pão. Soube que, nas escolas, podemos estudar diferentes Línguas e suas culturas, tais como Alemão, Espanhol, Francês e Inglês. Percebi a importância de conhecer a prática das diferentes Artes humanas: as Visuais, as Musicais e as Dramáticas. Reconheci a importância do corpo em movimento, quer nas diferentes modalidades esportivas, quer nas atividades de consciência e de saúde corporal. Vivenciei na prática, junto com meus colegas de Área (Língua Portuguesa e Literatura), que, para ensinar nossa língua materna, precisamos escrever mais e fazer com que a gramática exista em sua prática.

Tudo isso aprendi com estudantes, professores, funcionários, funcionários terceirizados, bolsistas de Extensão e de Pesquisa, estagiários e familiares. No CAp, também reconheci a importância de saber lidar com as diferenças, de respeitar os animais abandonados, de conquistar a melhor forma de fazer com que o máximo possível de estudantes gostasse de ler e de escrever.

Mas o mais importante que aprendi foi que professores não devem parar. Devem continuar estudando, de modo a buscar o conhecimento de forma integrada. Devem ter olhos abertos para o novo, como as novas tecnologias. Precisam seguir aprendendo sempre ao longo de todas as suas vidas, sem medo, sem preconceito.

Tudo isso aprendi no CAp UFRGS, com todos, mas principalmente com o grupo onde atuei por vinte anos e que guardo com carinho especial em minha caixa de lembranças: o Projeto Amora.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

ARQUIPÉLAGOS E OCEANOS


Tenho acompanhado diferentes postagens sobre o momento que estamos vivendo. Dentre elas, as que falam de criações artísticas e das alterações urbanas ou naturais que vêm ocorrendo em função da redução de circulação humana no mundo. Há muita criações artísticas neste período de pandemia, várias delas tentando registrar o momento histórico por que passamos, buscando refletir sobre ele, ou simplesmente se preocupando em atravessar este momento de uma forma emocionalmente mais saudável.

Uma destas iniciativas artísticas é a série de fotografias intitulada Insulae, do fotógrafo Raphael Alves, que vem registrando em imagens o cotidiano de Manaus, capital do Estado do Amazonas. Em isolamento social, saindo apenas para o necessário, Raphael carrega sempre sua câmera, de modo a registrar as diferentes “ilhas” em que estamos vivendo. Trata-se de um impactante registro de foto-jornalismo. Insulae, nome latino que originou no Português a palavra “ilha”, é uma metáfora da situação de isolamento em que nos encontramos.

Com sua câmera e seu olhar, talvez Raphael busque a melhor forma de registro e de reflexão sobre pessoas de máscara, janelas ocupadas, filas em lotéricas para pagamento de contas, sacolas indo e vindo de supermercados, poucos carros nas ruas, ônibus vazios, casas de idosos e escolas fechadas...

Penso na metáfora “ilha”, no conjunto de ilhas, também: “arquipélago”.
               
Somos arquipélagos hoje. Isolados, estamos rodeadas de outras ilhas. Algo quase inédito para nós, seres humanos, acostumados a viver em estado de oceano. Éramos humanos que pensávamos ser oceanos, parte principal e responsável pela existência da Terra. Em estado de oceano, circulávamos livremente pelo mundo, senhores de nossas ações, imprescindíveis, absolutos. Livres, levando por nossas águas não só nossos valores (descobertas científicas, manifestações artísticas, gestos de solidariedade), mas também nosso lixo, que segue indo e vindo, flutuando sem rumo por nossas correntes marítimas.

Hoje, não mais oceanos, nosso estado insular nos mostra que não somos senhores de nada, mas parte de um mundo diverso. Somos ilhas que nada circulam, apenas recebem em suas praias o ir e vir do oceano. A natureza, sim, em seu estado oceânico, nos mostra que não é a Terra que está doente, mas nós que a fazemos assim. Pequenas pontas de terra despertada, somos hoje o que sempre deveríamos ter sido: parte da Terra, que nos dá sinais de que é muito maior do que nós. Generosamente, em correntes fluidas, a natureza nos mostra que não somos a Terra, mas apenas parte dela.

Penso isso hoje, nesta segunda-feira, quando, pequena ilha em minha casa, leio que, depois de quase oitenta anos, os picos do Himalaia podem novamente ser vistos.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

ABRINDO JANELAS, TRANSFORMANDO MÁSCARAS


Com os teatros e os cinemas fechados, relembro espetáculos e filmes. Muitos deles nos remetem ao momento em que estamos vivendo, tempo de apreensão, isolamento, novas formas de interação. Tempo de usarmos máscaras para sairmos, mas de, ao mesmo tempo, abandonarmos nossas máscaras, em busca de nossa essência, de novas reflexões sobre um cotidiano que a corrida do dia a dia teima em banalizar.

Penso no espetáculo Imobilhados.

Imobilhados é um espetáculo do grupo Máscara EnCena que trata do cotidiano de um prédio onde moram diferentes tipos humanos: a moça bonita que busca o amor, o homem sozinho que faz música para seu pássaro, a pessoa idosa e seu xilofone, o casal jovem, a hippie esotérica, a mulher de meia-idade com mania de limpeza, o homem grosseiro e o faxineiro do prédio.

Em meio a tantos tipos (personagens que representam grupos), cada personagem vive sua própria solidão a, aos poucos, vai se desacomodando quando veem seu cotidiano interrompido por acontecimentos que não lhes são controláveis: nascimento, morte, abandono, doença...

O cenário do espetáculo simula um prédio e suas unidades (apartamentos), e a plateia é convidada a entrar no cotidiano das personagens através de “janelas” de observação. O mais curioso e belo é que entramos na vida das personagens através da iluminação, da trilha sonora, sem que haja uma palavra dita, em função da técnica de representação utilizada pelo grupo de atores: a atuação com máscaras.

Através dos corpos expressivos dos quatro atores que encenam o espetáculo, conhecemos as vidas dos moradores do prédio-cenário e delas participamos. A interação corpo-máscara tão belamente mostrada pelo grupo nos remete à Commedia Dell’arte. Máscara, corpo em movimento, assunto cotidiano e personagens tipificadas trazem ao espectador um momento único, delicado, singular, sobre a necessidade do outro para a sobrevivência e para a felicidade humana.

Nestes tempos de compreendermos a importância das janelas de das máscaras, de quando as abrir ou as fechar, de quando as usar ou as retirar, lembro a delicadeza e a beleza de Imobilhados.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

ESCREVER À MÃO


Manhã cinza-azulada. Minha caligrafia continua escorrendo pelas folhas do meu caderno azul. Escrevo à mão o que chega à ponta do lápis.

Imagino o trabalho dos monges copistas: acordavam, arrumavam-se, faziam suas orações e, pacientemente, copiavam. Sem se preocuparem até quando, sem saberem para quem, sem sonharem se aconteceria com seus manuscritos o que ocorreu com a Biblioteca de Alexandria. em seus dias de cópias e cópias viviam uma vida monótona, ou quem sabe até por vezes movimentada, como recria Umberto Eco, em O nome da rosa, adaptado para o cinema, com direção de Jean-Jacques Annaud.

Os copistas enchiam rolos e rolos de escrita antiga para que ela sobrevivesse ao presente e, talvez, chegasse a algum futuro. Foi assim que, de instante em instante, conhecemos muitos dos textos antigos que lemos. Sobreviveram pelas mãos dos copistas Platão, Aristóteles e muitos gregos antigos. Livros inteiros escritos à mão nos chegaram através de uma caligrafia cuidada e de iluminuras pacientemente elaboradas: texto e imagem lado a lado.

A chegada da imprensa facilitou e muito o caminho dos livros até seus leitores. Tudo o que temos hoje para ler nos chegou através dela. Quase tudo, pois não podemos nos esquecer dos meios digitais, tão recém-nascidos nesta longa história da escrita e de leitores.

Escrevo à mão no meu caderno azul. Todos os dias. E me lembro deste tempo em que a escrita era tramada, copiada, recriada, em autoria múltipla: as ideias não tinham dono, pois eram de todos, registradas por muitos, em um esforço coletivo de preservação da arte e do pensamento humanos.

Muitas vezes, os manuscritos eram feitos de palavras, acompanhadas de imagens e, também, de sons. As cantigas medievais eram obra do instante. Cantadas e dançadas por trovadores em apresentações eram poemas-performance. Também elas foram escritas, desenhadas e partituradas pelas mãos dos copistas. Através deles, elas se preservaram e, hoje, muitas delas, em sua vertente galego-portuguesa, podem ser conhecidas em projetos digitais, como o Projeto Littera.

Manhã cinza-azulada. Escrevo no meu caderno azul, à mão, lembrando o tempo em que tudo era mais difícil: ler, escrever, estudar... Tempo lento, mais um dia em casa: mais um dia em que tento pensar sobre os nossos dias, observando a vida pelas janelas do tempo, para buscar nelas algum detalhe entalhado à mão pelo dia que nasce.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

AMANHÃ O DIA É VERDE


Temos observado que, mesmo em Porto Alegre, uma cidade grande, grilos, pássaros, pequenos animais têm circulado livremente, em função da redução de nossa presença humana nas ruas. Com quase tudo parado, inclusive novas construções, a paisagem urbana vem recebendo visitas da natureza.

Até mesmo onde a natureza é apenas passagem para nós, podemos observar o retorno daqueles que afugentamos com a nossa presença. Ontem, porexemplo, um casal de urubus-rei foi visto num parque fechado à visitação humana por causa da quarentena, o Parque Estadual de Turvo, em Derrubadas, no nordeste do Rio Grande do Sul. Outro casal foi visto no Parque dos Aparados da Serra, entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Os urubus-rei estão ameaçados de extinção, quer seja por conta da destruição de seu habitat, quer por causa do tráfico de animais. Diferentes e belos, os Sarcoramphus papa, também conhecidos como urubutingas (urubus brancos), são muito importantes para a limpeza do meio-ambiente, pois, aves de rapina, têm como alimento os animais mortos ou agonizantes, ajudando a manter o equilíbrio natural. São aves de hábito solitário e de lenta reprodução, pois a fêmea põe de um a dois ovos que, nascidos, levam cerca de três anos para atingirem a maturidade sexual.

Nestes tempos em que muitos de nós saímos de cena, a natureza retoma o espaço que dela tiramos. Isto nos faz relembrar que não somos os únicos no mundo, mas parte desta cadeia natural. Ao destruí-la, destruiremo-nos também. Trata-se do óbvio, já sabíamos disso por leituras de relatos científicos. Mas, nestes dias em que muitos humanos reduziram suas atividades, nossos olhos e nossos ouvidos podem sentir que voltaram os pássaros, os animais de todos os tipos e os diferentes tons de verde.

Hoje escrevo: “Amanhã o dia é verde”. Assim será se acordarmos para este retorno resistente da natureza, passando a efetivamente respeitá-la, pois dela fazemos parte. Apenas uma pequena parte. O amanhã poderá ser verde, fruto de espera no pé, princípio que gera, verde preparo que aguarda generosa e sabiamente o amadurecimento humano.  

terça-feira, 7 de abril de 2020

AGUADA


A água lava tudo por onde passa. Se pelos olhos, lágrima. Se pelos rins, urina. Se pelas artes, aguada. Aguada é o gênero de pintura em que se dilui a tinta com água, obtendo-se uma cor transparente.

Na aguada, a tinta escorre pelo papel e registra sua passagem com maior ou com menor intensidade. A água conduz as tintas que se misturam: pigmentos em festa! Amarelos e azuis: verdes. Amarelos e vermelhos: laranjas. Azuis e vermelhos: roxos. 

A água, fluida, caminha solta entre os pigmentos, misturando-os sem o controle total de quem pinta. A aguada tem vida própria. É ela mesma a artista que cria sua paleta, sem o absoluto controle de quem está do lado de fora. Nela, o líquido é o caminho dos matizes, a medida da intensidade, a mão que pesa ou que alivia. É, desta forma, a vida ao sabor do instante. 

Por isso, nestes dias em que tivemos de mudar nossos rumos, nossos planejamentos, nossos compromissos, precisamos ser aguada para descobrirmos as nuances das cores, partindo do primário para chegarmos ao secundário.  É preciso que sigamos os caminhos que a água nos traz. Só então seremos aguada, onde a cor não encontra barreiras: escorre, espalha-se, busca seus contornos e segue, mesclando matizes.

Água e pigmento dançam juntos, embrenhando-se papel adentro. Seguem. Buscam uma vida em aguada, sempre ao sabor dos caminhos. Até onde se formam os tons. Até onde todas as cores se misturam. Até onde está a essência dos marrons!

segunda-feira, 6 de abril de 2020

TECER EM PEDACINHOS


Escrever é pensar em pedacinhos e tentar descobrir a forma de trançar estes pequenos pedaços coloridos em um fio longo, tramado, contínuo. É arte de tempo e de vida. Muitas são as tecelãs nas diferentes mitologias. Dentre elas, as primordiais moiras (ou parcas, para os romanos) são senhoras do tempo: a primeira fia, a segunda escolhe e estica o fio, a terceira o corta. Senhoras de nossos tempos.

Penélope é outra tecelã. Ao contrário das moiras, tece durante o dia a mortalha de seu amado Ulisses, trazendo-o de volta à vida de noite, ao destecer tudo o que havia feito. Penélope tenta ser senhora de seu tempo, do tempo de Ulisses, eternizando a vida que passa entre o tecer e o destecer: tempo em estado presente, em estado de memória.

O que foi tecido é presente.

Tenho tentado tecer palavras todos os dias. Em pedacinhos. Procuro juntar coloridas pontas de um tempo que escorre aos poucos. Teço os momentos que chegam em fios primários: azuis, vermelhos e amarelos. Às vezes, teço frases que saem tortas, não parecem “tapetes”, “cobertores”, mas “jacarés”. Outras vezes, penso em bonecos de neve na quase Páscoa em que estamos.


Hoje também tento tecer. Teço os momentos que se vão para trazê-los até o agora: o que foi tecido é presente. Teço os possíveis futuros, as possíveis linhas que nos chegam. Teço em pedacinhos coloridos, recolhendo os pequenos fios que coleto, emendando-os em pontos de trança. Os novelos de tempo unem os diferentes fios de vida. Sigo com meus cabelos em lã cinza, quase branca, tramados em ponto de trança.

Penso no tecer em pedacinhos justo hoje: dia em que a Tecelina completa maioridade. Há 18 anos, num sábado, durante a festa que inaugurou a temporada de celebração de dez anos da Editora Projeto, nascia Tecelina. Desde então, nossa menina (da Cristina Biazetto e minha) tem seguido seus dias pacientemente, criando laços e tramando vidas leitoras. Autônoma. Tantas vezes, eu me surpreendo e a encontro em lugares que nem esperaria encontrar, entre leitores que a conhecem e a levam para passear por seus próprios caminhos tecidos.

Penso no tecer em pedacinhos hoje, quando a Tecelina chega à maioridade, pois com ela, e com tantas outras tecelinas que povoam minha origem e meus dias, tento aprender a arte de tecer o tempo através de fios coloridos. Com ela tento ter a paciência de tecer pouco a pouco, para transformar o tempo em um tecido de ideias e de afetos.


sexta-feira, 3 de abril de 2020

FOLHEAR O QUE QUASE FOI


Passadas estas duas semanas, retorno à minha agenda. Ainda costumo usar agendas de papel, pois posso anotar os compromissos, riscá-los, substituí-los, relembrá-los, guardá-los em manuscritos. Desde que estamos em isolamento social, todos os compromissos que acontecem fora de casa foram cancelados. Pelo menos os de março e os de abril. Por enquanto. A maioria das minhas anotações de agenda são as de compromissos fora de casa. Não precisamos anotar coisas do tipo “acordar a tal hora”, “organizar a casa”, “fazer a comida”, “escrever” ou “tomar banho”, por exemplo.

Começo a folhear minha agenda e releio tudo o que quase foi. Num primeiro momento, tive a sensação de morte, como se eu folheasse a agenda de alguém que morreu e pensasse: “Vê, coitada, se estivesse viva faria tal e tal coisa”. Mas a agenda era minha e não estou morta. Ainda não, quem sabe um dia, daqui a muitos e muitos anos, espero!

Começo, assim, a sentir a sensação de um futuro que não foi. De um futuro que não mais será. Futuro do pretérito. Entendo agora na prática o que muitas vezes tentei explicar para os meus alunos: o futuro do pretérito, o que seria e não foi, o futuro do quase. Há um certo desespero em saber que quase tudo o que projetamos será por um bom tempo futuro do pretérito. Assusta. Deprime? Não... Não vamos chegar a tanto!

Em minha cabeça, que tantos anos estudou gramática para tentar fazê-la menos distante daqueles que se assustavam com ela, começo a buscar um antídoto para curar esta sensação de um quase futuro, aquele que existiu apenas nos nossos planos. Encontro então, nos presentes, este jeito de não sentir que tudo poderia ter sido e não foi.

Abro minha agenda a cada dia. Registro o agora. Refaço dia a dia cada página! Que ela seja um presente diário, feito de tudo o que as manhãs possam nos proporcionar.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

O MUNDO É DE PAPÉIS CORTADOS


Quando pequena, conheci as histórias de Hans Christian Andersen através de um livro de minha irmã: A pequena vendedora de fósforos. Foi a história mais triste que conheci na vida! Triste, imensamente triste a história daquela menina que, no inverno inimaginável para uma criança brasileira, vendia seus fósforos, em pleno Natal, na rua cheia de neve acumulada.


Aos poucos, percebi que, mesmo tristes, outras histórias de Andersen entraram em minha infância e permaneceram comigo até a idade adulta: O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia, O Patinho Feio... Tristes, sim, muito tristes! Já grande, professora e escritora, conheci vários outros contos de Andersen. Conheci, também, um pouco de sua vida, através de autobiografias escritas por ele e de biografias escritas por estudiosos de sua obra.

Até que fui apresentada aos papéis cortados de Hans Christian Andersen pelo escritor e ilustrador Luís Camargo! Nas páginas virtuais do Museu Hans Christian Andersen, em Odense, e da Royal Library, em Copenhague, conheci um mundo colorido em papel. Alegre, tão alegre! Todos eles feitos pelas mãos de Andersen, o mesmo dos contos que me soavam tristes, mas que ficaram comigo até a vida adulta. Comecei, então, a produzir os poemas de Do Alto do meu Chapéu, publicado pela Editora Projeto no dia 2 de abril de 2011.

Dia 2 de abril. Dia Internacional do Livro Infantil e Juvenil. Dia em que, há 215 anos, nascia na cidade de Odense um menino pobre, que criou um mundo de arte com palavras e imagens. Um mundo triste e alegre ao mesmo tempo- porque assim é a vida... Através dos contos de Hans Christian, compreendi que o mundo é triste, mas, alegre também. Rico de personagens e da poesia de seus papéis cortados!

Por isso, no dia de hoje, salve o menino de Odense, que criou sua arte ao brincar com marionetes feitas por ele e por seu pai. Salve o menino esquisito, que, sempre menino, até quando adulto, contava suas histórias ao mesmo tempo em que recortava suas imagens com tesouras! Salve Hans Christian, que buscava sua arte, sem dela se esquecer jamais...

Salve o menino que me ensinou, antes de tudo, que o mundo, nós mesmos o recortamos. Sempre. Criando nossos caminhos, entre palavras, cores e papéis.




quarta-feira, 1 de abril de 2020

DIA DO AVESSO


Certa vez, li sobre a origem das peças que pregamos nos outros em todo dia primeiro de abril. Não me lembro dos detalhes, apenas da sonora expressão francesa poisson d’ avril (peixe de abril). Parece que, lá pelos 1500, alguns franceses não aceitavam o ano novo que determinava o então recentemente implementado calendário gregoriano (primeiro de janeiro) e continuavam a seguir o calendário antigo, cujo ano iniciava na primavera europeia, em primeiro de abril.

Na escola, quando pequena, o primeiro de abril era o dia em que tentávamos enganar o maior número de colegas, oferecendo a eles alguma possibilidade “feliz”, mas irrealizável:

- Amanhã não tem aula!
- ...
- Primeiro de abril!

- Hoje não vai ter dever de casa!
- ...
- Primeiro de abril!

Evitávamos situações tristes, do tipo “Sua casa pegou fogo!”, pois estas poderiam ser reais, e aquelas brincadeiras de criança, antes de serem parte da celebração de um dia chamado Dia dos Bobos, era, na verdade, o Dia do Avesso. Neste dia, tudo o que sonhávamos poderia ser verdade. Mesmo que por alguns segundos.

Nestas duas semanas em que estamos virados do avesso, penso nas possibilidades de eu-criança me dizer: “-Vamos ao cinema? -... – Primeiro de abril!”. Mas já não somos mais crianças, e o avesso nos traz diferentes possibilidades para o olhar. Assim, procuro notícias que possam marcar este nosso primeiro de abril. Lá em São, Paulo, leio: “Voluntáriospenduram lanches em varal para ajudar moradores de rua em Limeira durantepandemia”.Primeiro de abril? Não.

Nestas duas semanas em que estamos do avesso, podemos nos olhar do avesso também: o nosso, o do mundo, para percebermos as possibilidades de mudança, nossa e do que nos rodeia. Neste primeiro de abril, os segundos de esperança da infância surgem das minhas lembranças e querem que todos os dias sigam sendo Dias do Avesso.

terça-feira, 31 de março de 2020

FAZER PÃO


Ficar em casa o máximo que se possa. Conversar, assistir a filmes, ler, escrever, criar.  Fazer pão.

O pão. Este alimento tão simples e tão antigo, presente entre os diversos grupos humanos, pode ser feito apenas com farinha e água. Ele é universal. A forma de fazer pão traduz a essência de alimentação dos diferentes grupos humanos. É tempo de fazer pão. É tempo de, estando em casa, trazer para o alimento o toque de cada ser que o prepara.

Penso na preparação do alimento enquanto forma de expressão humana. Algumas cenas de livros e de filmes em que a cozinha se faz presente surgem em minha memória. No livro da mexicana Laura Esquivel, Como água para chocolate, Tita, nascida em uma cozinha, expressa sua tristeza e seu amor através dos pratos que prepara. Ela não podia ir contra sua sina de filha mais nova, cujo futuro seria o de cuidar de sua mãe até a morte. Então, expressava sua tristeza, sua dor e seu amor impossível através dos pratos que preparava. O livro foi adaptado para o cinema em 1992, dirigido por Alfonso Arau.

Muitos são os filmes que tratam da relação entre os seres humanos e a necessidade de alimento, de preparo desse. Alguns deles são O tempero da vida, de Tassos Boulmetis, Chocolate, de Lasse Hallström (2001), A festa de Babette, de Gabriel Axel. Deste último, um flash apenas: Babette a servir para seus patrões um jantar refinado de culinária francesa. Alimento e sentido de vida, a transcendência rumo ao desconhecido.

Mas e o fazer pão? Este alimento tão simples e tão difícil ao mesmo tempo, pois depositário do segredo da fermentação! Em casa, neste momento em que muitos temos a necessidade de ficar, quer trabalhando, quer estudando, quer criando, quer cozinhando, precisamos retomar a arte de fazer pão. A arte de transformar o simples em essencial à vida, o não-perecível (farinha, sal, água, fermento) em perecível (pão).

Fazer o pão é o gesto primitivo da subsistência. Os povos antigos, desprovidos de tecnologia e de luz elétrica, guardavam os grãos que a terra lhes dava e os transformavam até virarem pão. Depois, o distribuíam, feitos na generosidade da sobrevivência.

Viver e escrever como fazer pão: cada dia, cada instante, para transformar o tempo em sobrevivência.

segunda-feira, 30 de março de 2020

O SEGREDO DA LARANJEIRA


Nossas vidas de janela seguem. Temos tempo para observar o que se passa fora de casa e o que se passa na memória que trazemos do que existe fora de casa. Começamos a pensar nas caminhadas no sol de domingos passados, nos encontros com amigos e familiares, nas conversas que julgávamos jogar fora...

Da janela da minha memória, enxergo uma cena que se passou na rua, poucos anos depois de eu chegar a Porto Alegre para aqui morar. Eu caminhava pela cidade e encontrei, numa rua chamada Sofia Veloso, uma árvore plantada num canteiro da calçada, cheia de frutos. Uma laranjeira!

Era outono, tempo das frutas cítricas, quando os quintais e terrenos dos que moram em casa começam a se encher de laranjas, de cidras, de limas, de limões, de bergamotas... Eu pouco tinha visto árvores em calçadas, principalmente em cidades grandes. As únicas lembranças mais concretas que tinha de frutas “urbanas”, espalhadas pela cidade, eram os tamarindos- que enchiam o chão do bairro Grajaú, onde eu andava de bicicleta na infância-, e as jacas que sempre se espatifaram em todos os lugares onde há mato no Rio de Janeiro.

Laranjas no pé eram uma novidade para mim. Ainda mais as daquela árvore que, cheia de frutos, na calçada, não era de ninguém, de nenhuma casa. Seus frutos estavam ali. Apenas estavam.

Aquela árvore enchia a rua de uma capital que acolhia surpresas rurais. Como tinha nascido ali? Talvez, alguém tivesse jogado um caroço, ou mais de um, depois de trazer sua laranja de casa. Talvez, os pássaros, feitos de espalhar sementes, ou as crianças, capazes de ver plantas brotarem, tivessem plantado despretensiosamente a laranjeira. Depois de nascer e de crescer, como a árvore tinha frutificado? Quem colheria seus frutos? Um mistério.

Por anos aquela cena ficou na minha memória. Pensei em escrever um texto sobre a árvore, mas não consegui por todos estes anos, afinal, ela estava lá, na calçada. Para que seria necessário um registro escrito? Volta e meia eu poderia reencontrá-la!

Mas hoje, quando o carro da Prefeitura nos pediu com seu alto-falante para que ficássemos em casa, para que saíssemos o menos possível, a laranjeira brotou seus frutos em minha memória com toda força. Sinto vontade de retomar aquela laranjeira do anos 1990, plantada na rua. Sinto vontade de descrevê-la e de descobrir seu segredo de frutos fartos em meio urbano. De sair para observar seus frutos, seu segredo de abundância.

Não podemos, nem devemos sair. Penso na laranjeira e em seu segredo de abundância. Talvez, o segredo da laranjeira seja o da paciência. A paciência de recriar pouco a pouco o instante. Frutos verdes de outono a se oferecerem fartos no inverno.

sexta-feira, 27 de março de 2020

GRILO, GAFANHOTO, ESPERANÇA


Nestes dias de isolamento social, o jornalista Vítor Diel, um dos criadores do Literatura RS, relatou que, ao sair para passear perto de casa com o cãozinho da família, percebeu muitos grilos pela rua. E se perguntou: “Será que sempre estiveram ali e não os víamos? Ou a quarentena reduziu o barulho da cidade e agora os percebemos por todos os cantos?”.

A partir deste questionamento do Vítor, retornou aos meus ouvidos o canto dos grilos que temos escutado nas ruas vazias de ruídos. Uma destas noites, ouvi um som insistente e agudo, pulsando de forma ritmada. Levantei-me, achando que havia algum problema com o nobreak do computador. Estaria estragado? Não. Era um grilo que, distante uns bons andares de mim, cantava sonoramente.

Mas seria aquele inseto um grilo, um gafanhoto, ou uma esperança?

Com curiosidade própria dos que estão com tempo para conhecer novos assuntos, pensei em procurar as diferenças entre grilo, gafanhoto e esperança. Minhas buscas entomológicas não foram muito além do fato de os três terem cores que variam entre os verdes e as cores terrosas, até mesmo acinzentadas, de modo a lhes proporcionar camuflagem. Eles também podem cantar. Mestres da camuflagem e dos cantos ritmados, tanto o grilo, quanto o gafanhoto e a esperança conferem aos sons que produzem o caráter de música que seduz o outro para, enfim, preservar a espécie. Como as cigarras.

Grilo, gafanhoto e esperança. Será que sempre estiveram ali e não os víamos? Confesso que minhas descobertas protocientíficas não ajudaram muito para meu conhecimento de insetos. Muito menos para tentar responder a esta pergunta. Talvez sim... Não os escutávamos, não os víamos, por causa do barulho e do movimento das pessoas e dos veículos de Porto Alegre. Talvez não... Por causa do desequilíbrio ecológico, eles seguem se multiplicando indefinidamente... E como cantam!

Apenas uma descoberta, no entanto, abalou minhas “certezas científicas”: grilo, gafanhoto e esperança são diferentes em sua forma. 

A esperança, por exemplo, tem asas feitas em formato de folha. Sim, a esperança. A esperança! Este grilo verde, com suas asas em forma de folha, sempre esteve ali!

E a enxergamos toda vez que ela se faz necessária!

quinta-feira, 26 de março de 2020

ENTRE TEMPO E ESPERA


Tempo é algo que escorre. Faz-se presente apenas por um breve instante, virando passado e se lançando em futuro. O presente, este breve estalo entre o tempo que se foi e o que virá. É fato. Sabemos disso, mas insistimos em viver do que foi, ou projetar o que virá, deixando de lado este “instante-já”, como nomeia Clarice, em seu livro Água Viva, a fração de tempo que é o agora.

Vivemos projetados para o futuro, esquecendo-nos de que o tempo, este “Senhor tão bonito”, como nos canta Caetano Veloso, em Oração ao Tempo, é Cronos a nos devorar sem piedade. Passa e não retorna mais. “Tempo, tempo, tempo, tempo”... Tempo, irmão da espera.

Em um mundo em que o presente cada vez menos importa, nos esquecemos da importância da espera, da necessidade do presente. E passamos a vida em estado de stand by, momentos em que nossos aparelhos estão ligados, mas não funcionam plenamente.

O tempo é irmão da espera. Tantas são as imagens de espera que a Literatura nos traz, muitas delas femininas. 

Hemera espera infinitamente sua mãe Nix para trazerem, juntas, ainda que separadas, o dia e a noite para o mundo. Penélope tece e destece seus fios para driblar seus pretendentes. À beira do Mar de Vigo, uma moça acolhe as ondas que chegam enquanto, delas, não vem seu amado. Em sua torre, Rapunzel urde um jeito de fugir, tecendo suas tranças. Todas esperam. E refletem em suas esperas a imagem do casulo. A simples imagem de espera em transformação.

O presente é um casulo. Um ato de espera em que, cuidadosamente, nos tecemos lagartas, rumo a nossas asas de borboleta.


quarta-feira, 25 de março de 2020

O QUE FAZER QUANDO SE ESTÁ PARADO


Em tempos de pandemia, tem ressurgido nas redes sociais a canção dos anos 70 O dia em que a Terra parou, de Raul Seixas. Acompanham a canção postagens sobre como Raul previu a pandemia de Covid-19, sobre o que fazer para se prevenir de stress emocional em tempos de quarentena, sobre como organizar o tempo quando se está em casa... 

São tantas as sugestões para não pararmos, mesmo estando parados: desenhar, cantar, fazer exercícios, ler, assistir a filmes, cozinhar, limpar a casa e até - o que deveríamos fazer todos os dias- escovar os dentes e tomar banho.

O que fazer quando se está parado, então, além de tudo que nos é proposto?

Neste contexto, penso em Edward Lear, grande pintor e escritor nascido na Inglaterra em 1812, que trabalhou como ilustrador para a Zoological Society of London quando jovem. Lear dedicou-se a desenhar pássaros. Circulava pelos viveiros da Zoological Society e, enquanto vários artistas de sua época desenhavam a partir de animais empalhados, ele os desenhava vivos, em movimento, inclusive produzindo sua arte dentro dos viveiros dos pássaros, de modo a observá-los melhor.

Um desenho de observação necessita de um olhar acolhedor às nuances das formas e dos movimentos, às variações das sombras, aos matizes das cores. Lear, então, dedicava-se a perceber o outro em seu voo-pássaro, por diferentes ângulos, até chegar a uma representação próxima do real (ainda assim representação) de cada outro que observava. Foi justamente esta atitude de observar os pássaros vivos e em movimento que o fez ser um grande pintor.

O que fazer, então, quando se está parado?

Observar. A observação é uma ação que tem como pressuposto fixar os olhos em algo, em alguém, ou em si mesmo. É o ato de, com o olhar e o corpo fixos, considerar o que olhamos com atenção, detalhamento e estudo. É uma ação sem movimento.

Observar é mais do que ver, mais do que enxergar. No Latim, língua fonte de nossa língua e de tantas outras, a palavra observatio, de onde veio “observação” em Português, é um substantivo feminino, da terceira declinação, que traz diferentes sentidos. Por exemplo, nos escritos de Cícero, observatio pode ser traduzida como “observação”, “advertência”, “consideração”, “cautela”. Já nos de Valerius Maximus, significa “respeito”, “veneração”. Para Celsus, “o regime que o médico intima ao doente”. Todos estes significados moram no atualmente pouco utilizado Dicionário Latino-Português, de Francisco Antônio de Souza, em edição de Lello e irmão – Editores, publicado no Porto, Portugal, em 1959. Ufa!

Tudo isto para dizer que precisamos observar, pois observar é mais do que ver. É respeitar, é reverenciar, é pausar os olhos doentes de pressa para descobrirmos (ou ressignificarmos) o novo. É preciso observar para olharmos para nós mesmos e para os outros com olhos de vida, de movimento, de renovação, de modo a, enfim, conjugarmos em todas as línguas a alteridade: observo, observas, observavi, observatum, observare!

Em tempo...
OBS.: Não foram inseridos os acentos devidos nas palavras latinas, pois o teclado está configurado para o Português.

terça-feira, 24 de março de 2020

SOBRE A RETOMADA DAS JANELAS

As janelas surgem criativas e cheias de surpresas em diferentes manifestações artísticas.
               
No cinema, em 1954, Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta) coloca em confinamento o fotógrafo L.B. Jeffries, em função de um acidente de trabalho. De sua janela, Jeffries passa a observar a vida de seus vizinhos e se vê envolvido na descoberta de um possível assassinato.
               
Em 1988, Krzystof Kieslowiski (Não Amarás), desperta o amor de Tomek por Magdalena, cuja vida é seguida obsessivamente pelo jovem, que a observa de sua janela.

Mais recentemente, The Neighbors’ Window (A janela dos vizinhos), dirigido, escrito e produzido por Marshall Curry, recebeu o Oscar 2020 de Melhor Curta-Metragem. O filme narra a vida de duas famílias, através da observação que um casal com filhos faz da vida de outro casal recém-casado que lhes é vizinho de janela.

Nunca vi tantos vizinhos em suas janelas nestes dias em que muitos de nós estamos dentro de casa. Mas minha mente narrativa apenas consegue apreender fatos isolados: uma moça que faz ginástica, uma cabeça de costas encostada na parede, um rapaz que brinca com o cachorro, uma senhora que espana o sofá, um homem que toma chimarrão, outra pessoa que toma sol no terraço do prédio... Na rua, poucos caminham, a maioria com sacolas de comida. Nada mais do que isso.

Talvez, minha vontade cinéfila não tenha despertado meus olhos narrativos. Então, de repente, meus ouvidos acordam para uma canção de Beto Guedes: Paisagem da janela. Seus versos dançam nos meus ouvidos: Da janela lateral/Do quarto de dormir/ Vejo uma igreja/ Um sinal de glória/ Vejo um muro branco/ E um voo pássaro/ Vejo uma grade/ E um velho sinal...

Da janela do meu quarto de dormir, vai-se embora a vontade narrativa. Surge, então, um jardim escondido atrás do prédio aqui da frente, por exemplo.

Apenas paisagem.

Nunca a tinha enxergado antes. As flores fúcsia escalam tão rosadas por uma parede distante dos meus olhos que parecem chegar à minha janela. Devem estar nos fundos de uma casa que fica na rua aqui ao lado, perto de uma garagem. Em meio a janelas, pessoas em suas casas, paredes cor-de-burro-quando-foge, vários buquês fúcsia escalam tão alto para se mostrarem em suas cores quentes. Agarradas às paredes sem cor, as flores despontam, rasgando partes de concreto.

Pequenas, mas juntas, trazem cor para toda a paisagem. E, vistas da janela de cada quarto de dormir, nutrem lembranças e perfumes de primavera!     

segunda-feira, 23 de março de 2020

A RUA É DOS PÁSSAROS


Acordo todos os dias no mesmo horário para trabalhar. As manhãs não esperam.
Nas segundas-feiras, as ruas são carros e pessoas a caminho. Hoje não.

Depois de dias dentro de casa, as pessoas surgem aos poucos em suas janelas. Acordam, vestem-se, conversam com seus celulares, abrem suas casas para o sol. Seus corpos estão presos em suas gaiolas. Talvez fosse o que sempre quisessem fazer: estar em casa, dormir, cozinhar, ler...

São poucos os que saem para as ruas, quase todos de passagem. Na rua, os tantos que nela moram podem, enfim, ser vistos e ouvidos: ocupam as calçadas com seus colchões, suas casas sem teto, seus animais de estimação.

As manhãs de segunda, geralmente, acordam a cidade que retoma sua vida "adulta", suas atividades comerciais, administrativas, sociais.

Hoje não.

Os dias de reclusão humana fizeram com que viessem os pássaros: bem-te-vis, quero-queros, sabiás, caturritas...Todos juntos acordam a manhã desta segunda. Posso ouvi-los de todos os cômodos da casa.

E, em minha memória poética, parodio o verso de Castro Alves:
A rua! A rua é dos pássaros!