segunda-feira, 30 de março de 2020

O SEGREDO DA LARANJEIRA


Nossas vidas de janela seguem. Temos tempo para observar o que se passa fora de casa e o que se passa na memória que trazemos do que existe fora de casa. Começamos a pensar nas caminhadas no sol de domingos passados, nos encontros com amigos e familiares, nas conversas que julgávamos jogar fora...

Da janela da minha memória, enxergo uma cena que se passou na rua, poucos anos depois de eu chegar a Porto Alegre para aqui morar. Eu caminhava pela cidade e encontrei, numa rua chamada Sofia Veloso, uma árvore plantada num canteiro da calçada, cheia de frutos. Uma laranjeira!

Era outono, tempo das frutas cítricas, quando os quintais e terrenos dos que moram em casa começam a se encher de laranjas, de cidras, de limas, de limões, de bergamotas... Eu pouco tinha visto árvores em calçadas, principalmente em cidades grandes. As únicas lembranças mais concretas que tinha de frutas “urbanas”, espalhadas pela cidade, eram os tamarindos- que enchiam o chão do bairro Grajaú, onde eu andava de bicicleta na infância-, e as jacas que sempre se espatifaram em todos os lugares onde há mato no Rio de Janeiro.

Laranjas no pé eram uma novidade para mim. Ainda mais as daquela árvore que, cheia de frutos, na calçada, não era de ninguém, de nenhuma casa. Seus frutos estavam ali. Apenas estavam.

Aquela árvore enchia a rua de uma capital que acolhia surpresas rurais. Como tinha nascido ali? Talvez, alguém tivesse jogado um caroço, ou mais de um, depois de trazer sua laranja de casa. Talvez, os pássaros, feitos de espalhar sementes, ou as crianças, capazes de ver plantas brotarem, tivessem plantado despretensiosamente a laranjeira. Depois de nascer e de crescer, como a árvore tinha frutificado? Quem colheria seus frutos? Um mistério.

Por anos aquela cena ficou na minha memória. Pensei em escrever um texto sobre a árvore, mas não consegui por todos estes anos, afinal, ela estava lá, na calçada. Para que seria necessário um registro escrito? Volta e meia eu poderia reencontrá-la!

Mas hoje, quando o carro da Prefeitura nos pediu com seu alto-falante para que ficássemos em casa, para que saíssemos o menos possível, a laranjeira brotou seus frutos em minha memória com toda força. Sinto vontade de retomar aquela laranjeira do anos 1990, plantada na rua. Sinto vontade de descrevê-la e de descobrir seu segredo de frutos fartos em meio urbano. De sair para observar seus frutos, seu segredo de abundância.

Não podemos, nem devemos sair. Penso na laranjeira e em seu segredo de abundância. Talvez, o segredo da laranjeira seja o da paciência. A paciência de recriar pouco a pouco o instante. Frutos verdes de outono a se oferecerem fartos no inverno.

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