quinta-feira, 30 de abril de 2020

ONTEM VIAJEI PELA LUA


Quando pequena, gostava de viajar por mapas, tentando imaginar como seria a vida nos lugares mais distantes que encontrava! Às vezes, olhava os contornos dos países, imaginando se me seria um dia possível conhecer todos eles. Era um jeito de viajar sem sair de casa.

Ontem viajei pela Lua! Dentro de casa, viajei pela Lua pois, há poucos dias, a Nasa, o Serviço Geológico dos EUA (USGS) e o Instituto Lunar Planetário divulgaram o "Mapa Geológico Unificado da Lua". Não foram as novas possibilidades de estudos que me levaram à Lua, mas o passeio exploratório por descobertas antigas, tais como a navegação por mares que não são mares (Mare Serenitatis, Mare Fecunditatis, Mare Tranquilitatis), por lagos que não são lagos (Lacus Doloris, Lacus Somniorum), por golfos que não são golfos (Sinus Amoris, Sinus Concordiae). E também por rimas.

Na Lua também há rimas. Ou melhor, na Lua há fissuras. No Latim rima/rimae significa “fissura”. Na Lua, as diferentes fissuras recebem o nome de rima (fissura) ou rimae (fissuras). Na poética lunar, cabe um pouco de tudo: sentimentos como tranquilidade, amor, dor, serenidade... Também cabem homenagens, pois várias das formações geológicas presentes na superfície da Lua recebem, além dos nomes classificatórios dados pela Geologia Planetária (mare, lacus, sinus, rima), o nome de alguma personalidade, como no caso das rimae.

Viajei ontem por um conjunto chamado Rimae Hypatia. Este conjunto de fraturas na superfície da Lua recebeu o nome de uma mulher que viveu aproximadamente de 351 a 370 d.C., Hypatia de Alexandria. Foi uma filósofa, astrônoma e matemática. Diz-se que construiu astrolábios e hidrômetros, instrumentos que já existiam antes dela. Ensinava a pagãos e a cristãos, independentemente de seu credo pessoal, tendo reconhecida influência política na Alexandria.

Como os gregos estudados de sua época, a maioria deles homens, Hypatia entendia também de poesia. Por isso hoje continua viva na Lua, onde tantas outras rimas se fazem presentes.



sexta-feira, 17 de abril de 2020

PLENITUDES


Nenhuma planta é plena. A cada estação lhes falta algo: no verão, flores; no outono, folhas; no inverno, brotos... No inverno, dormem em seu estado moribundo. Então chega a primavera e espanta de tudo uma quase morte, trazendo a cada planta a força aparente da plenitude.

Mas nenhuma planta é plena e, na primavera, não há seus frutos. As folhas estão verdes, renascidas, as flores brotadas. As flores são a véspera dos frutos. Seus perfumes e suas cores atraem os insetos que seguem em sua missão jardineira. Das flores vem o pólen; dos frutos, os caroços. Ambos geram novas plantas.

Entre eles, outono e primavera, o frio do inverno. Seus cinzas, seus vazios, seus recolhimentos próprios... Cada árvore se despe em tronco seco, desfilando a nudez dos campos. O inverno e seus adormecimentos necessários: nenhuma planta é plena.

Mas sua essência, seu estado-planta, segue o rumo de cada estação. E sabe que as pequenas plenitudes brotam entre pólen e caroços.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

QUASE DOMINGOS


Há algo de preparação na dinâmica dos dias: acordar, tomar café, lavar a louça, aguar as plantas, alimentar os animais, tomar sol. O sol geladinho das manhãs de outono traz a memória primitiva humana dos tempos em que, bebês, nos colocavam para tomar sol. Braços e pernas nus ou cobertos, conforme a época do ano, cedo pela manhã, os bebês são expostos ao sol pelas mãos de um adulto.

Esta pode ser a sensação de muitos quando os dias são quase todos domingo. Cedo, o pouco movimento das ruas envolve o sol em seus silêncios. Sentados ao sol, no silêncio das manhãs, somos bebês sem palavras. Nada distrai nosso corpo, esponjas de claridade. Os raios de sol no outono, perto das 7 da manhã, não são os que bronzeiam, nem os que laceram a pele. São esperança de aquecer a alma, junto com tudo o que se desperta: pássaros, sons de canecas, um ou outro carro, cachorros ao longe, silêncios de gatos...

Cedo, no outono, pode-se ouvir o mundo pela janela, como as crianças em seus tempos de peitoril, olhando a vida que passa. Somos meninos de janela, tentando descobrir a hora certa de sair para brincar. Ou planejando em que recanto nos escondermos, nas futuras brincadeiras de esconde-esconde. 

Hoje e todos os dias são quase fins de semana. Perto das 7 da manhã, quando o sol ainda não arde e ainda não está bem claro, acolhemos em nossos corpos a manhã que desperta. E guardamos para mais um dia o olhar da criança que tem na rua um grande quadro vivo por onde seus olhos e seus ouvidos passeiam.

De domingo a domingo.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

DOS SONS QUE SE OUVEM


Cedo, os ônibus já cruzam as ruas. Freiam seus apitos finos entrecortados e em seguida seguem com seu ronco de motor. Os carros passam por alguma falha no asfalto, dando saltos com seus calçados de pneus. Um único carro recusa-se a fazer silêncio: deve haver algum furo em seu silenciador.

Nas calçadas, um carrinho rola sua roda metálica. Talvez esteja indo buscar comida no supermercado. O carrinho para na calçada, espera uma moto passar com seu som ascendente, até sumir dos ouvidos. Um martelo golpeia ritmadamente alguma parede em construção, enquanto uma serra grita em tom seco com um pedaço de madeira.

Os cachorros latem uns para os outros, como sempre latiram ao se encontrarem durante seus passeios matinais. Já os pássaros cantam em bandos dançando ao vento, que, ao mesmo tempo, zumbe tão contínuo... deslizante!

Enquanto isso, as poucas pessoas que saem a pé gritam bem alto:
- Tudo bem com vocês!
- Sim, quanto tempo, hein?
- Sim, quanto tempo...

As poucas pessoas que saem a pé gritam bem alto, mais do que os carros e os ônibus, mais do que os martelos e as serras, mais do que os cães, os pássaros e o vento. Gritam. Qualquer coisa, qualquer fala. Quem sabe por causa das máscaras, ou apenas para que todos os que estão em suas casas saibam que ainda existem vozes humanas.

terça-feira, 14 de abril de 2020

CAIXA DE LEMBRANÇAS


No dia 14 de abril de 1954, há sessenta e seis anos, nascia o Colégio de Aplicação da UFRGS. Como os demais Colégios de Aplicação, teve o objetivo de integrar experimentações metodológicas pesquisadas nas Universidades Federais à efetiva prática docente, de modo a que aquelas fossem aprimoradas e difundidas em outras escolas, públicas ou privadas.  

Hoje é aniversário do Colégio de Aplicação da UFRGS. Pelos quase vinte e dois anos em que estive lá, todos os anos, em seu aniversário, o Colégio parava no recreio, e vários bolos gigantes eram distribuídos entre estudantes, professores, funcionários, funcionários terceirizados, bolsistas de Extensão e de Pesquisa, estagiários, para comemorar a data.

Com o tempo, a comissão organizadora do evento descobriu que a maioria dos estudantes preferia cachorros-quentes, em vez de bolo. E assim foi feito: todos os anos, todos comiam cachorros-quentes para comemorar mais um ano do Colégio. Todos: estudantes, professores, funcionários, funcionários terceirizados, bolsistas de Extensão e de Pesquisa, estagiários... porque o Colégio era (e ainda é) formado por todos. A festa previa, também, atividades de lazer ou artísticas.

Não sei se nos últimos quatro anos houve comemorações neste formato, pois estive no Colégio de 1994 até 2016. Apenas sei que hoje não vai ser assim, pois não haverá recreio, não haverá aula no prédio do Colégio. Por isso, atendendo ao pedido do Projeto LiteraCAp, escrevo este texto, uma comemoração virtual em agradecimento pelos anos que lá vivi.

Coisas que aprendi no CAp UFRGS...

Aprendi que as ciências ditas exatas têm seu lado prático. Podemos aprender sobre Química, por exemplo, fazendo pão. Soube que, nas escolas, podemos estudar diferentes Línguas e suas culturas, tais como Alemão, Espanhol, Francês e Inglês. Percebi a importância de conhecer a prática das diferentes Artes humanas: as Visuais, as Musicais e as Dramáticas. Reconheci a importância do corpo em movimento, quer nas diferentes modalidades esportivas, quer nas atividades de consciência e de saúde corporal. Vivenciei na prática, junto com meus colegas de Área (Língua Portuguesa e Literatura), que, para ensinar nossa língua materna, precisamos escrever mais e fazer com que a gramática exista em sua prática.

Tudo isso aprendi com estudantes, professores, funcionários, funcionários terceirizados, bolsistas de Extensão e de Pesquisa, estagiários e familiares. No CAp, também reconheci a importância de saber lidar com as diferenças, de respeitar os animais abandonados, de conquistar a melhor forma de fazer com que o máximo possível de estudantes gostasse de ler e de escrever.

Mas o mais importante que aprendi foi que professores não devem parar. Devem continuar estudando, de modo a buscar o conhecimento de forma integrada. Devem ter olhos abertos para o novo, como as novas tecnologias. Precisam seguir aprendendo sempre ao longo de todas as suas vidas, sem medo, sem preconceito.

Tudo isso aprendi no CAp UFRGS, com todos, mas principalmente com o grupo onde atuei por vinte anos e que guardo com carinho especial em minha caixa de lembranças: o Projeto Amora.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

ARQUIPÉLAGOS E OCEANOS


Tenho acompanhado diferentes postagens sobre o momento que estamos vivendo. Dentre elas, as que falam de criações artísticas e das alterações urbanas ou naturais que vêm ocorrendo em função da redução de circulação humana no mundo. Há muita criações artísticas neste período de pandemia, várias delas tentando registrar o momento histórico por que passamos, buscando refletir sobre ele, ou simplesmente se preocupando em atravessar este momento de uma forma emocionalmente mais saudável.

Uma destas iniciativas artísticas é a série de fotografias intitulada Insulae, do fotógrafo Raphael Alves, que vem registrando em imagens o cotidiano de Manaus, capital do Estado do Amazonas. Em isolamento social, saindo apenas para o necessário, Raphael carrega sempre sua câmera, de modo a registrar as diferentes “ilhas” em que estamos vivendo. Trata-se de um impactante registro de foto-jornalismo. Insulae, nome latino que originou no Português a palavra “ilha”, é uma metáfora da situação de isolamento em que nos encontramos.

Com sua câmera e seu olhar, talvez Raphael busque a melhor forma de registro e de reflexão sobre pessoas de máscara, janelas ocupadas, filas em lotéricas para pagamento de contas, sacolas indo e vindo de supermercados, poucos carros nas ruas, ônibus vazios, casas de idosos e escolas fechadas...

Penso na metáfora “ilha”, no conjunto de ilhas, também: “arquipélago”.
               
Somos arquipélagos hoje. Isolados, estamos rodeadas de outras ilhas. Algo quase inédito para nós, seres humanos, acostumados a viver em estado de oceano. Éramos humanos que pensávamos ser oceanos, parte principal e responsável pela existência da Terra. Em estado de oceano, circulávamos livremente pelo mundo, senhores de nossas ações, imprescindíveis, absolutos. Livres, levando por nossas águas não só nossos valores (descobertas científicas, manifestações artísticas, gestos de solidariedade), mas também nosso lixo, que segue indo e vindo, flutuando sem rumo por nossas correntes marítimas.

Hoje, não mais oceanos, nosso estado insular nos mostra que não somos senhores de nada, mas parte de um mundo diverso. Somos ilhas que nada circulam, apenas recebem em suas praias o ir e vir do oceano. A natureza, sim, em seu estado oceânico, nos mostra que não é a Terra que está doente, mas nós que a fazemos assim. Pequenas pontas de terra despertada, somos hoje o que sempre deveríamos ter sido: parte da Terra, que nos dá sinais de que é muito maior do que nós. Generosamente, em correntes fluidas, a natureza nos mostra que não somos a Terra, mas apenas parte dela.

Penso isso hoje, nesta segunda-feira, quando, pequena ilha em minha casa, leio que, depois de quase oitenta anos, os picos do Himalaia podem novamente ser vistos.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

ABRINDO JANELAS, TRANSFORMANDO MÁSCARAS


Com os teatros e os cinemas fechados, relembro espetáculos e filmes. Muitos deles nos remetem ao momento em que estamos vivendo, tempo de apreensão, isolamento, novas formas de interação. Tempo de usarmos máscaras para sairmos, mas de, ao mesmo tempo, abandonarmos nossas máscaras, em busca de nossa essência, de novas reflexões sobre um cotidiano que a corrida do dia a dia teima em banalizar.

Penso no espetáculo Imobilhados.

Imobilhados é um espetáculo do grupo Máscara EnCena que trata do cotidiano de um prédio onde moram diferentes tipos humanos: a moça bonita que busca o amor, o homem sozinho que faz música para seu pássaro, a pessoa idosa e seu xilofone, o casal jovem, a hippie esotérica, a mulher de meia-idade com mania de limpeza, o homem grosseiro e o faxineiro do prédio.

Em meio a tantos tipos (personagens que representam grupos), cada personagem vive sua própria solidão a, aos poucos, vai se desacomodando quando veem seu cotidiano interrompido por acontecimentos que não lhes são controláveis: nascimento, morte, abandono, doença...

O cenário do espetáculo simula um prédio e suas unidades (apartamentos), e a plateia é convidada a entrar no cotidiano das personagens através de “janelas” de observação. O mais curioso e belo é que entramos na vida das personagens através da iluminação, da trilha sonora, sem que haja uma palavra dita, em função da técnica de representação utilizada pelo grupo de atores: a atuação com máscaras.

Através dos corpos expressivos dos quatro atores que encenam o espetáculo, conhecemos as vidas dos moradores do prédio-cenário e delas participamos. A interação corpo-máscara tão belamente mostrada pelo grupo nos remete à Commedia Dell’arte. Máscara, corpo em movimento, assunto cotidiano e personagens tipificadas trazem ao espectador um momento único, delicado, singular, sobre a necessidade do outro para a sobrevivência e para a felicidade humana.

Nestes tempos de compreendermos a importância das janelas de das máscaras, de quando as abrir ou as fechar, de quando as usar ou as retirar, lembro a delicadeza e a beleza de Imobilhados.