terça-feira, 31 de março de 2020

FAZER PÃO


Ficar em casa o máximo que se possa. Conversar, assistir a filmes, ler, escrever, criar.  Fazer pão.

O pão. Este alimento tão simples e tão antigo, presente entre os diversos grupos humanos, pode ser feito apenas com farinha e água. Ele é universal. A forma de fazer pão traduz a essência de alimentação dos diferentes grupos humanos. É tempo de fazer pão. É tempo de, estando em casa, trazer para o alimento o toque de cada ser que o prepara.

Penso na preparação do alimento enquanto forma de expressão humana. Algumas cenas de livros e de filmes em que a cozinha se faz presente surgem em minha memória. No livro da mexicana Laura Esquivel, Como água para chocolate, Tita, nascida em uma cozinha, expressa sua tristeza e seu amor através dos pratos que prepara. Ela não podia ir contra sua sina de filha mais nova, cujo futuro seria o de cuidar de sua mãe até a morte. Então, expressava sua tristeza, sua dor e seu amor impossível através dos pratos que preparava. O livro foi adaptado para o cinema em 1992, dirigido por Alfonso Arau.

Muitos são os filmes que tratam da relação entre os seres humanos e a necessidade de alimento, de preparo desse. Alguns deles são O tempero da vida, de Tassos Boulmetis, Chocolate, de Lasse Hallström (2001), A festa de Babette, de Gabriel Axel. Deste último, um flash apenas: Babette a servir para seus patrões um jantar refinado de culinária francesa. Alimento e sentido de vida, a transcendência rumo ao desconhecido.

Mas e o fazer pão? Este alimento tão simples e tão difícil ao mesmo tempo, pois depositário do segredo da fermentação! Em casa, neste momento em que muitos temos a necessidade de ficar, quer trabalhando, quer estudando, quer criando, quer cozinhando, precisamos retomar a arte de fazer pão. A arte de transformar o simples em essencial à vida, o não-perecível (farinha, sal, água, fermento) em perecível (pão).

Fazer o pão é o gesto primitivo da subsistência. Os povos antigos, desprovidos de tecnologia e de luz elétrica, guardavam os grãos que a terra lhes dava e os transformavam até virarem pão. Depois, o distribuíam, feitos na generosidade da sobrevivência.

Viver e escrever como fazer pão: cada dia, cada instante, para transformar o tempo em sobrevivência.

segunda-feira, 30 de março de 2020

O SEGREDO DA LARANJEIRA


Nossas vidas de janela seguem. Temos tempo para observar o que se passa fora de casa e o que se passa na memória que trazemos do que existe fora de casa. Começamos a pensar nas caminhadas no sol de domingos passados, nos encontros com amigos e familiares, nas conversas que julgávamos jogar fora...

Da janela da minha memória, enxergo uma cena que se passou na rua, poucos anos depois de eu chegar a Porto Alegre para aqui morar. Eu caminhava pela cidade e encontrei, numa rua chamada Sofia Veloso, uma árvore plantada num canteiro da calçada, cheia de frutos. Uma laranjeira!

Era outono, tempo das frutas cítricas, quando os quintais e terrenos dos que moram em casa começam a se encher de laranjas, de cidras, de limas, de limões, de bergamotas... Eu pouco tinha visto árvores em calçadas, principalmente em cidades grandes. As únicas lembranças mais concretas que tinha de frutas “urbanas”, espalhadas pela cidade, eram os tamarindos- que enchiam o chão do bairro Grajaú, onde eu andava de bicicleta na infância-, e as jacas que sempre se espatifaram em todos os lugares onde há mato no Rio de Janeiro.

Laranjas no pé eram uma novidade para mim. Ainda mais as daquela árvore que, cheia de frutos, na calçada, não era de ninguém, de nenhuma casa. Seus frutos estavam ali. Apenas estavam.

Aquela árvore enchia a rua de uma capital que acolhia surpresas rurais. Como tinha nascido ali? Talvez, alguém tivesse jogado um caroço, ou mais de um, depois de trazer sua laranja de casa. Talvez, os pássaros, feitos de espalhar sementes, ou as crianças, capazes de ver plantas brotarem, tivessem plantado despretensiosamente a laranjeira. Depois de nascer e de crescer, como a árvore tinha frutificado? Quem colheria seus frutos? Um mistério.

Por anos aquela cena ficou na minha memória. Pensei em escrever um texto sobre a árvore, mas não consegui por todos estes anos, afinal, ela estava lá, na calçada. Para que seria necessário um registro escrito? Volta e meia eu poderia reencontrá-la!

Mas hoje, quando o carro da Prefeitura nos pediu com seu alto-falante para que ficássemos em casa, para que saíssemos o menos possível, a laranjeira brotou seus frutos em minha memória com toda força. Sinto vontade de retomar aquela laranjeira do anos 1990, plantada na rua. Sinto vontade de descrevê-la e de descobrir seu segredo de frutos fartos em meio urbano. De sair para observar seus frutos, seu segredo de abundância.

Não podemos, nem devemos sair. Penso na laranjeira e em seu segredo de abundância. Talvez, o segredo da laranjeira seja o da paciência. A paciência de recriar pouco a pouco o instante. Frutos verdes de outono a se oferecerem fartos no inverno.

sexta-feira, 27 de março de 2020

GRILO, GAFANHOTO, ESPERANÇA


Nestes dias de isolamento social, o jornalista Vítor Diel, um dos criadores do Literatura RS, relatou que, ao sair para passear perto de casa com o cãozinho da família, percebeu muitos grilos pela rua. E se perguntou: “Será que sempre estiveram ali e não os víamos? Ou a quarentena reduziu o barulho da cidade e agora os percebemos por todos os cantos?”.

A partir deste questionamento do Vítor, retornou aos meus ouvidos o canto dos grilos que temos escutado nas ruas vazias de ruídos. Uma destas noites, ouvi um som insistente e agudo, pulsando de forma ritmada. Levantei-me, achando que havia algum problema com o nobreak do computador. Estaria estragado? Não. Era um grilo que, distante uns bons andares de mim, cantava sonoramente.

Mas seria aquele inseto um grilo, um gafanhoto, ou uma esperança?

Com curiosidade própria dos que estão com tempo para conhecer novos assuntos, pensei em procurar as diferenças entre grilo, gafanhoto e esperança. Minhas buscas entomológicas não foram muito além do fato de os três terem cores que variam entre os verdes e as cores terrosas, até mesmo acinzentadas, de modo a lhes proporcionar camuflagem. Eles também podem cantar. Mestres da camuflagem e dos cantos ritmados, tanto o grilo, quanto o gafanhoto e a esperança conferem aos sons que produzem o caráter de música que seduz o outro para, enfim, preservar a espécie. Como as cigarras.

Grilo, gafanhoto e esperança. Será que sempre estiveram ali e não os víamos? Confesso que minhas descobertas protocientíficas não ajudaram muito para meu conhecimento de insetos. Muito menos para tentar responder a esta pergunta. Talvez sim... Não os escutávamos, não os víamos, por causa do barulho e do movimento das pessoas e dos veículos de Porto Alegre. Talvez não... Por causa do desequilíbrio ecológico, eles seguem se multiplicando indefinidamente... E como cantam!

Apenas uma descoberta, no entanto, abalou minhas “certezas científicas”: grilo, gafanhoto e esperança são diferentes em sua forma. 

A esperança, por exemplo, tem asas feitas em formato de folha. Sim, a esperança. A esperança! Este grilo verde, com suas asas em forma de folha, sempre esteve ali!

E a enxergamos toda vez que ela se faz necessária!

quinta-feira, 26 de março de 2020

ENTRE TEMPO E ESPERA


Tempo é algo que escorre. Faz-se presente apenas por um breve instante, virando passado e se lançando em futuro. O presente, este breve estalo entre o tempo que se foi e o que virá. É fato. Sabemos disso, mas insistimos em viver do que foi, ou projetar o que virá, deixando de lado este “instante-já”, como nomeia Clarice, em seu livro Água Viva, a fração de tempo que é o agora.

Vivemos projetados para o futuro, esquecendo-nos de que o tempo, este “Senhor tão bonito”, como nos canta Caetano Veloso, em Oração ao Tempo, é Cronos a nos devorar sem piedade. Passa e não retorna mais. “Tempo, tempo, tempo, tempo”... Tempo, irmão da espera.

Em um mundo em que o presente cada vez menos importa, nos esquecemos da importância da espera, da necessidade do presente. E passamos a vida em estado de stand by, momentos em que nossos aparelhos estão ligados, mas não funcionam plenamente.

O tempo é irmão da espera. Tantas são as imagens de espera que a Literatura nos traz, muitas delas femininas. 

Hemera espera infinitamente sua mãe Nix para trazerem, juntas, ainda que separadas, o dia e a noite para o mundo. Penélope tece e destece seus fios para driblar seus pretendentes. À beira do Mar de Vigo, uma moça acolhe as ondas que chegam enquanto, delas, não vem seu amado. Em sua torre, Rapunzel urde um jeito de fugir, tecendo suas tranças. Todas esperam. E refletem em suas esperas a imagem do casulo. A simples imagem de espera em transformação.

O presente é um casulo. Um ato de espera em que, cuidadosamente, nos tecemos lagartas, rumo a nossas asas de borboleta.


quarta-feira, 25 de março de 2020

O QUE FAZER QUANDO SE ESTÁ PARADO


Em tempos de pandemia, tem ressurgido nas redes sociais a canção dos anos 70 O dia em que a Terra parou, de Raul Seixas. Acompanham a canção postagens sobre como Raul previu a pandemia de Covid-19, sobre o que fazer para se prevenir de stress emocional em tempos de quarentena, sobre como organizar o tempo quando se está em casa... 

São tantas as sugestões para não pararmos, mesmo estando parados: desenhar, cantar, fazer exercícios, ler, assistir a filmes, cozinhar, limpar a casa e até - o que deveríamos fazer todos os dias- escovar os dentes e tomar banho.

O que fazer quando se está parado, então, além de tudo que nos é proposto?

Neste contexto, penso em Edward Lear, grande pintor e escritor nascido na Inglaterra em 1812, que trabalhou como ilustrador para a Zoological Society of London quando jovem. Lear dedicou-se a desenhar pássaros. Circulava pelos viveiros da Zoological Society e, enquanto vários artistas de sua época desenhavam a partir de animais empalhados, ele os desenhava vivos, em movimento, inclusive produzindo sua arte dentro dos viveiros dos pássaros, de modo a observá-los melhor.

Um desenho de observação necessita de um olhar acolhedor às nuances das formas e dos movimentos, às variações das sombras, aos matizes das cores. Lear, então, dedicava-se a perceber o outro em seu voo-pássaro, por diferentes ângulos, até chegar a uma representação próxima do real (ainda assim representação) de cada outro que observava. Foi justamente esta atitude de observar os pássaros vivos e em movimento que o fez ser um grande pintor.

O que fazer, então, quando se está parado?

Observar. A observação é uma ação que tem como pressuposto fixar os olhos em algo, em alguém, ou em si mesmo. É o ato de, com o olhar e o corpo fixos, considerar o que olhamos com atenção, detalhamento e estudo. É uma ação sem movimento.

Observar é mais do que ver, mais do que enxergar. No Latim, língua fonte de nossa língua e de tantas outras, a palavra observatio, de onde veio “observação” em Português, é um substantivo feminino, da terceira declinação, que traz diferentes sentidos. Por exemplo, nos escritos de Cícero, observatio pode ser traduzida como “observação”, “advertência”, “consideração”, “cautela”. Já nos de Valerius Maximus, significa “respeito”, “veneração”. Para Celsus, “o regime que o médico intima ao doente”. Todos estes significados moram no atualmente pouco utilizado Dicionário Latino-Português, de Francisco Antônio de Souza, em edição de Lello e irmão – Editores, publicado no Porto, Portugal, em 1959. Ufa!

Tudo isto para dizer que precisamos observar, pois observar é mais do que ver. É respeitar, é reverenciar, é pausar os olhos doentes de pressa para descobrirmos (ou ressignificarmos) o novo. É preciso observar para olharmos para nós mesmos e para os outros com olhos de vida, de movimento, de renovação, de modo a, enfim, conjugarmos em todas as línguas a alteridade: observo, observas, observavi, observatum, observare!

Em tempo...
OBS.: Não foram inseridos os acentos devidos nas palavras latinas, pois o teclado está configurado para o Português.

terça-feira, 24 de março de 2020

SOBRE A RETOMADA DAS JANELAS

As janelas surgem criativas e cheias de surpresas em diferentes manifestações artísticas.
               
No cinema, em 1954, Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta) coloca em confinamento o fotógrafo L.B. Jeffries, em função de um acidente de trabalho. De sua janela, Jeffries passa a observar a vida de seus vizinhos e se vê envolvido na descoberta de um possível assassinato.
               
Em 1988, Krzystof Kieslowiski (Não Amarás), desperta o amor de Tomek por Magdalena, cuja vida é seguida obsessivamente pelo jovem, que a observa de sua janela.

Mais recentemente, The Neighbors’ Window (A janela dos vizinhos), dirigido, escrito e produzido por Marshall Curry, recebeu o Oscar 2020 de Melhor Curta-Metragem. O filme narra a vida de duas famílias, através da observação que um casal com filhos faz da vida de outro casal recém-casado que lhes é vizinho de janela.

Nunca vi tantos vizinhos em suas janelas nestes dias em que muitos de nós estamos dentro de casa. Mas minha mente narrativa apenas consegue apreender fatos isolados: uma moça que faz ginástica, uma cabeça de costas encostada na parede, um rapaz que brinca com o cachorro, uma senhora que espana o sofá, um homem que toma chimarrão, outra pessoa que toma sol no terraço do prédio... Na rua, poucos caminham, a maioria com sacolas de comida. Nada mais do que isso.

Talvez, minha vontade cinéfila não tenha despertado meus olhos narrativos. Então, de repente, meus ouvidos acordam para uma canção de Beto Guedes: Paisagem da janela. Seus versos dançam nos meus ouvidos: Da janela lateral/Do quarto de dormir/ Vejo uma igreja/ Um sinal de glória/ Vejo um muro branco/ E um voo pássaro/ Vejo uma grade/ E um velho sinal...

Da janela do meu quarto de dormir, vai-se embora a vontade narrativa. Surge, então, um jardim escondido atrás do prédio aqui da frente, por exemplo.

Apenas paisagem.

Nunca a tinha enxergado antes. As flores fúcsia escalam tão rosadas por uma parede distante dos meus olhos que parecem chegar à minha janela. Devem estar nos fundos de uma casa que fica na rua aqui ao lado, perto de uma garagem. Em meio a janelas, pessoas em suas casas, paredes cor-de-burro-quando-foge, vários buquês fúcsia escalam tão alto para se mostrarem em suas cores quentes. Agarradas às paredes sem cor, as flores despontam, rasgando partes de concreto.

Pequenas, mas juntas, trazem cor para toda a paisagem. E, vistas da janela de cada quarto de dormir, nutrem lembranças e perfumes de primavera!     

segunda-feira, 23 de março de 2020

A RUA É DOS PÁSSAROS


Acordo todos os dias no mesmo horário para trabalhar. As manhãs não esperam.
Nas segundas-feiras, as ruas são carros e pessoas a caminho. Hoje não.

Depois de dias dentro de casa, as pessoas surgem aos poucos em suas janelas. Acordam, vestem-se, conversam com seus celulares, abrem suas casas para o sol. Seus corpos estão presos em suas gaiolas. Talvez fosse o que sempre quisessem fazer: estar em casa, dormir, cozinhar, ler...

São poucos os que saem para as ruas, quase todos de passagem. Na rua, os tantos que nela moram podem, enfim, ser vistos e ouvidos: ocupam as calçadas com seus colchões, suas casas sem teto, seus animais de estimação.

As manhãs de segunda, geralmente, acordam a cidade que retoma sua vida "adulta", suas atividades comerciais, administrativas, sociais.

Hoje não.

Os dias de reclusão humana fizeram com que viessem os pássaros: bem-te-vis, quero-queros, sabiás, caturritas...Todos juntos acordam a manhã desta segunda. Posso ouvi-los de todos os cômodos da casa.

E, em minha memória poética, parodio o verso de Castro Alves:
A rua! A rua é dos pássaros!