quinta-feira, 9 de abril de 2020

ESCREVER À MÃO


Manhã cinza-azulada. Minha caligrafia continua escorrendo pelas folhas do meu caderno azul. Escrevo à mão o que chega à ponta do lápis.

Imagino o trabalho dos monges copistas: acordavam, arrumavam-se, faziam suas orações e, pacientemente, copiavam. Sem se preocuparem até quando, sem saberem para quem, sem sonharem se aconteceria com seus manuscritos o que ocorreu com a Biblioteca de Alexandria. em seus dias de cópias e cópias viviam uma vida monótona, ou quem sabe até por vezes movimentada, como recria Umberto Eco, em O nome da rosa, adaptado para o cinema, com direção de Jean-Jacques Annaud.

Os copistas enchiam rolos e rolos de escrita antiga para que ela sobrevivesse ao presente e, talvez, chegasse a algum futuro. Foi assim que, de instante em instante, conhecemos muitos dos textos antigos que lemos. Sobreviveram pelas mãos dos copistas Platão, Aristóteles e muitos gregos antigos. Livros inteiros escritos à mão nos chegaram através de uma caligrafia cuidada e de iluminuras pacientemente elaboradas: texto e imagem lado a lado.

A chegada da imprensa facilitou e muito o caminho dos livros até seus leitores. Tudo o que temos hoje para ler nos chegou através dela. Quase tudo, pois não podemos nos esquecer dos meios digitais, tão recém-nascidos nesta longa história da escrita e de leitores.

Escrevo à mão no meu caderno azul. Todos os dias. E me lembro deste tempo em que a escrita era tramada, copiada, recriada, em autoria múltipla: as ideias não tinham dono, pois eram de todos, registradas por muitos, em um esforço coletivo de preservação da arte e do pensamento humanos.

Muitas vezes, os manuscritos eram feitos de palavras, acompanhadas de imagens e, também, de sons. As cantigas medievais eram obra do instante. Cantadas e dançadas por trovadores em apresentações eram poemas-performance. Também elas foram escritas, desenhadas e partituradas pelas mãos dos copistas. Através deles, elas se preservaram e, hoje, muitas delas, em sua vertente galego-portuguesa, podem ser conhecidas em projetos digitais, como o Projeto Littera.

Manhã cinza-azulada. Escrevo no meu caderno azul, à mão, lembrando o tempo em que tudo era mais difícil: ler, escrever, estudar... Tempo lento, mais um dia em casa: mais um dia em que tento pensar sobre os nossos dias, observando a vida pelas janelas do tempo, para buscar nelas algum detalhe entalhado à mão pelo dia que nasce.

Nenhum comentário:

Postar um comentário